LIVROS POR TODA PARTE
Texto de Antonio Miranda
[ 16.05.1993 ]
“e purifique em tanta alteza o espírito
com olhos imortais
que faz que leia mais do que vê escrito.”
CAMÕES, Odes, VI
Aos montes. Por toda parte. Enfileirados, sobre estantes empoeiradas. Massa informe, compacta, com muralhas intransponíveis.
Os livros são uma fuga da realidade. De real, só a matéria de que são feitos. Papel machucado, intenções e sentimentos transliterado, em palavras que se sucedem, em linhas intermináveis. Labirintos, indecifráveis.
Todas as bibliotecas do mundo constituem uma única biblioteca, inconsútil. As bibliotecas se multiplicam aleatoriamente, a partir de uma matriz impossível. Os livros se repetem aqui e acolá, são os mesmos mas existem outros, produtos de uma mesma intenção, guardando a mesma forma original...
As palavras também são as mesmas, encadeadas de forma diferente, esperando o desencadeamento mágico das diversas leituras.
Paradoxo: as leituras transformam todos os livros em igual, ou em livros diferentes. Parece que os livros só existem nas cabeças dos leitores, jamais nos volumes de celulosa e tinta e outras matérias primas de sua elaboração fictícia (ou até mal intencionada...).
Livros são livros, mas tudo que existe — já dizia meu amigo Edson Nery da Fonseca — acaba em livro. Ou começa?
Nós somos cópias de livros, assim também os nossos pensamentos, as nossas vontades, as nossas patéticas estórias de vida.
Iguais na vida, nossas estórias só são diferentes nos livros.
Vidas insignificantes, rasteiras, multiplicam-se nos livros, buscando impossíveis originalidades ou singularidades. Mas, ao fim e ao cabo, é uma tarefa definitivamente inútil e absurda a do escritor, porque cada leitor acaba por transfigurar o texto “original”, dando-lhe versões personalizadas, múltiplas, ininteligíveis.
Há também os livros (em?) exemplares. Por favor, não estou falando de exemplares como reproduções, como subordinações identificáveis, múltiplas e mesmas.
Exemplar no sentido cervantino do termo, como modelo, como fonte e como exemplo. No fundo, todo livro é didático, quer ensinar a viver.
Certo: todos os escritores irmanam-se na pretensão de transformar e melhorar o mundo. Em harmonizá-lo. Até mesmo os livros escandalosos, os textos malsãos, as transgressões disciplinares, a anti-literatura, que é logo usada como exemplar, como parâmetro, como anti-medida, como advertência.
Afinal, o livro é sempre um risco, o maior de todos os riscos. É quando o autor acredita sair de si, extrapolar-se, objetivar-se, superar seu mundinho recôndito em busca de outros espaços — não diria coletivos, mas sim individualismos outros — e projetar-se em outros seres, de uma mesma cadeia, de uma mesma espécie, de uma mesma confraria. Mas logo constata a impossibilidade de qualquer comunicação o seu livro já é de outro, fica irreconhecível, cada exemplar é difer-ente. Tem vida própria, diferentes vidas, novas interpretações.
Toda escritura passa a ser a reinvenção de Orfeu, a reinvenção da vida.
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